quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Palavras de Saramago - A caverna

Palavras de Saramago

A caverna


É bem verdade que nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe.


A vida é assim mesmo, está cheia de palavras que não valem a pena, ou que valeram e já não valem, cada uma que ainda formos dizendo tirará o lugar a outra mais merecedora, que o seria não tanto por si mesma, mas pelas consequências de tê-la dito.


Comparando com a velocidade instantânea do pensamento, que segue em linha reta até quando parece ter perdido o norte, cremo-lo porque não percebemos que ele, ao correr numa direção, está a avançar em todas as direções, comparando, dizíamos, a pobre da palavra está sempre a precisar de pedir licença a um pé para fazer andar o outro, e mesmo assim tropeça constantemente, dúvida, entretém-se a dar voltas a um adjectivo, a ou um tempo verbal que lhe surgiu sem se fazer anunciar pelo sujeito [...]


Os dias são todos iguais, as horas é que não, quando os dias chegam ao fim tem sempre as suas vinte e quatro horas completas, mesmo quando elas não tiveram nada dentro [...]


 [...] a véspera é o que trazemos a cada dia que vamos vivendo, a vida é acarretar vésperas como quem acarreta pedras, quando já não podemos com a carga acabou-se a transportação, o ultimo dia é o único que não se pode chamar de véspera [...]


[...] em assunto do coração e do sentir, sempre o demasiado foi melhor que o diminuído.


[...] o mundo é assim mesmo, que as mentiras são muitas e as verdades nenhumas, ou alguma, sim, deverá andar por aí, mas em mudança contínua, não só não nos dá tempo para pensarmos nela enquanto verdade possível, como ainda teremos primeiro de averiguar se não se tratará de uma mentira provável.


Faço o que posso, percebo que há coisas que estão a fugir-me das mãos e outras que ameaçam fazê-lo, o meu problema é distinguir entre aquelas por que ainda vale a pena lutar e aquelas que devem ser deixadas ir sem pena. Ou com pena. A pena pior não é a que se sente no momento, é a que se vai sentir depois quando já não houver remédio. Diz-se que o tempo tudo cura. Não vivemos o bastante para lhe tirar prova disso.


Os momentos não chegam nunca tarde nem cedo, chegam à hora deles, não à nossa, não temos de agradecer-lhes as coincidências, quando ocorram, entre os que tinham para propor e o que nós necessitávamos.


Com apreciável e tranquilizadora unanimidade sobre o significado da palavra, os dicionários definem como ridículo tudo quanto se mostre digno de riso e zombaria, tudo o que mereça escárnio, tudo o que seja irrisório, tudo o que se preste ao cômico. Para os dicionários, a circunstância parece não existir, se bem que, obrigatoriamente chamados a explicar em que consiste, lhe chamem estado ou particularidade que acompanha um facto, o que, entre parêntesis, claramente nos aconselha a não separar dos factos as suas circunstâncias e a não os julgar a eles sem as ponderar a elas.


Há coisas que são tanto aquilo que são, que não precisam que as expliquemos.


A gente habitua-se. Sim, ouvimos dizer muitas vezes, ou dizemo-lo nós próprios, A gente habitua-se, dizemo-lo, ou dizem-no, com uma serenidade que parece autêntica, porque realmente não existe, ou ainda não se descobriu, outro modo de deitar cá para fora com a dignidade possível às nossas resignações, o que ninguém pergunta é à custa de quê de se  habitua a gente.


[...] quem sabe á espera de que a rotação do mundo voltasse a pôr todas as coisas nos seus lugares, sem esquecer algumas que até agora ainda não conseguiram encontrar sítio. 


Dizem os entendidos que viajar é importantíssimo para a formação do espírito, no entanto não é preciso ser-se uma luminária do intelecto para perceber que os espíritos, por muito viajeiros que sejam, precisam de voltar de vez em quando a casa porque só nela é que conseguem ganhar e conservar uma ideia passavelmente satisfatória acerca de si mesmos.


Conheço essas lágrimas que não caem e se consomem nos olhos, conheço essa dor feliz, essa espécie de felicidade dolorosa, esse ser e não ser, esse ter e não ter, esse querer e não poder. 


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