Palavras de Saramago
A caverna
É bem
verdade que nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe.
A vida é assim mesmo, está cheia de palavras que não valem a pena, ou
que valeram e já não valem, cada uma que ainda formos dizendo tirará o lugar a
outra mais merecedora, que o seria não tanto por si mesma, mas pelas
consequências de tê-la dito.
Comparando
com a velocidade instantânea do pensamento, que segue em linha reta até quando
parece ter perdido o norte, cremo-lo porque não percebemos que ele, ao correr
numa direção, está a avançar em todas as direções, comparando, dizíamos, a
pobre da palavra está sempre a precisar de pedir licença a um pé para fazer
andar o outro, e mesmo assim tropeça constantemente, dúvida, entretém-se a dar
voltas a um adjectivo, a ou um tempo verbal que lhe surgiu sem se fazer
anunciar pelo sujeito [...]
Os dias são todos iguais, as horas é que não, quando os dias chegam ao
fim tem sempre as suas vinte e quatro horas completas, mesmo quando elas não
tiveram nada dentro [...]
[...] a véspera é o que trazemos
a cada dia que vamos vivendo, a vida é acarretar vésperas como quem acarreta
pedras, quando já não podemos com a carga acabou-se a transportação, o ultimo
dia é o único que não se pode chamar de véspera [...]
[...] em
assunto do coração e do sentir, sempre o demasiado foi melhor que o diminuído.
[...] o mundo é assim mesmo, que as mentiras são muitas e as verdades
nenhumas, ou alguma, sim, deverá andar por aí, mas em mudança contínua, não só
não nos dá tempo para pensarmos nela enquanto verdade possível, como ainda
teremos primeiro de averiguar se não se tratará de uma mentira provável.
Faço o que
posso, percebo que há coisas que estão a fugir-me das mãos e outras que ameaçam
fazê-lo, o meu problema é distinguir entre aquelas por que ainda vale a pena
lutar e aquelas que devem ser deixadas ir sem pena. Ou com pena. A pena pior
não é a que se sente no momento, é a que se vai sentir depois quando já não
houver remédio. Diz-se que o tempo tudo cura. Não vivemos o bastante para lhe tirar
prova disso.
Os momentos não chegam nunca tarde nem cedo, chegam à hora deles, não à
nossa, não temos de agradecer-lhes as coincidências, quando ocorram, entre os
que tinham para propor e o que nós necessitávamos.
Com apreciável e tranquilizadora unanimidade sobre o significado da
palavra, os dicionários definem como ridículo tudo quanto se mostre digno de
riso e zombaria, tudo o que mereça escárnio, tudo o que seja irrisório, tudo o
que se preste ao cômico. Para os dicionários, a circunstância parece não
existir, se bem que, obrigatoriamente chamados a explicar em que consiste, lhe
chamem estado ou particularidade que acompanha um facto, o que, entre
parêntesis, claramente nos aconselha a não separar dos factos as suas
circunstâncias e a não os julgar a eles sem as ponderar a elas.
Há coisas que são tanto aquilo que são, que não precisam que as
expliquemos.
A gente habitua-se. Sim, ouvimos dizer muitas vezes, ou dizemo-lo nós
próprios, A gente habitua-se, dizemo-lo, ou dizem-no, com uma serenidade que
parece autêntica, porque realmente não existe, ou ainda não se descobriu, outro
modo de deitar cá para fora com a dignidade possível às nossas resignações, o
que ninguém pergunta é à custa de quê de se
habitua a gente.
[...] quem sabe á espera de que a rotação do mundo voltasse a pôr todas
as coisas nos seus lugares, sem esquecer algumas que até agora ainda não
conseguiram encontrar sítio.
Dizem os
entendidos que viajar é importantíssimo para a formação do espírito, no entanto
não é preciso ser-se uma luminária do intelecto para perceber que os espíritos,
por muito viajeiros que sejam, precisam de voltar de vez em quando a casa
porque só nela é que conseguem ganhar e conservar uma ideia passavelmente
satisfatória acerca de si mesmos.
Conheço essas lágrimas que não caem e se consomem nos olhos, conheço
essa dor feliz, essa espécie de felicidade dolorosa, esse ser e não ser, esse
ter e não ter, esse querer e não poder.